19.12.10

O Conclave

Thiago acordou assustado naquela noite, suava sangue. Pela primeira vez havia sonhado tão vividamente com o que acontecera em Windsor.

Um pouco antes de encontrar Guilherme naquele bar, sonhou com sua esposa e seu filho lhe dizendo que sua procura estava quase no fim.

Há anos estava sozinho e hoje, como nunca, sentia falta de conversar com seu mentor. Não sabia mais onde procurar, já tinha rodado praticamente o mundo todo atrás dessa cura. Cláudio lhe diria pra ter mais paciência e perseverança.

Thiago sabia que tinha a eternidade pra procurar, mas já estava nessa procura há três séculos, onde iria encontrar? Estava cansando.

E agora essa. Essa bendita guerra. Os mais novos tinham essa idéia de transformar o mundo em vampiros, os antitribu queriam tomar o poder e reinar como os antigos monarcas e a corrupção correndo solta no maldito mundo capitalista por conta dos vampiros corruptos.

E os humanos tinham se transformado meramente em comida e massa de manipulação. Poderia jurar que sua cabeça doía, mas infelizmente, não tinha mais dor.

Enquanto escovava seus dentes, olhava para o espelho e pensava em ser convincente na hora de apresentar Guilherme. Refazia o discurso em sua cabeça a fim de não esquecer ou deixar escapar em nenhum detalhe.

No fim das contas se afeiçoou ao garoto, ele não tinha culpa de nada. Só estava no lugar errado e na hora errada. Ainda não havia descoberto porque todas aquelas mortes tinham acontecido justo naquele local. E o cheiro daquele sangue não saia de sua cabeça.


Quando chegou a sala, Guilherme estava sentado no sofá com um livro em suas mãos.

- Estudando? – perguntou Thiago.

- Iradas essas magias com fogo hein Thiago? – Guilherme respondia sem tirar os olhos do livro.

- São, mas cuidado com elas. Você já sabe...

-Tá Thiago, já sei, eu só posso desenvolvê-las na sua presença...

- E, por favor, hoje simplesmente não abra a sua boca. Não quero ouvir um pio durante o conclave.

- CONCLAVE? Que conclave? Que porra é essa Thiago?

- Não quero que você abra sua boca, exatamente por causa disso. Eu passei meses te explicando regras, nomes, clãs e tudo mais e você, nada! Distração total, não é mesmo?

- Peraí Thiago, você nunca falou de conclave. Isso não!

- Falei. Falei mas vou repetir Guilherme – falou Thiago com uma expressão entediada – conclave é uma reunião pra apresentar novos membros à sociedade vampírica.

- Nossa, to me sentido até importante agora! – Fechou o livro Guilherme e levantando de ímpeto.

- Não se sinta. Pode ter certeza que você não é o único que será apresentado hoje.

- Ah, mas eu sou o mais bonito. Há!

Thiago olhou descrente para Guilherme e continuou:

- Bonito. E de boca fechada. Vá se trocar, vista-se pelo menos de calça hoje! Ponha um sapato...

- Ah não Thiago! Fala sério! Eu não uso sapato cara, não uso! Eu vou de chinelo e ponto!

- Hoje você vai usar Guilherme e sem reclamações. Vai te empresto uma das minhas roupas. E um sapato. Vamos, não fica me olhando com essa cara, estamos nos atrasando!

Quando Guilherme se aproximou do guarda roupa de Thiago se decepcionou.

- Puta que pariu velho! Só tem calça aqui e essas camisetas pretas e brancas. Todas com manga! Não Thiago, não vou. Vou assim, de regata, bermuda e chinelo!

- Ah, você vai sim. Já separei essa roupa pra você e não esqueça, se os Tremer não cortarem sua cabeça, eu corto! Portanto, vista-se!

Guilherme em meio a resmungos vestiu as roupas de Thiago.

- Tô me sentindo ridículo, velho. De bota. Bota!

- Isso é um coturno Guilherme e você está bem assim. Discreto.

- Essa calça ta me apertando, me pegando. Essa camiseta com manga, num tá bom. Nada tá bom.

- Tá ótimo e pare logo de reclamar. E lembre-se, nenhum pio!

- Tá, tá Thiago, já sei... – bufava Guilherme em insatisfação as vestes.

- Tem a jaqueta, não vai colocar?

- Você tá me zoando né Thiago, só pode ser. Chega, já basta essa calça e a bota, já chega...

Guilherme saiu pela porta batendo o pé enquanto Thiago dava um sorriso olhando o rapaz chamar o elevador. Enquanto desciam Thiago ainda brincava ao ver Guilherme vestido descentemente pela primeira vez.

- Tá gatinho hein?

- Que que é hein Thiago? Vai para de me zoar velho, eu tô me sentido ridículo com essa roupa.

- Que nada, ta o maior gatinho...

- Ih, olha o cara! Quase nunca fala e agora tá com essas viadagens pra cima de mim?

Thiago deu uma risada gostosa. Enquanto desciam pensava como estaria Claudio se pudesse vê-lo. Aos poucos foi criando o clima de tensão que havia em sua mente. Ao entrarem no carro, a primeira pergunta de Guilherme foi direta.

- O que me espera nesse tal de conclave?

- Não sei. Não sei nem o que me espera pra falar a verdade – falava Thiago com ar de desânimo.

- E se eles não me aceitarem Thiago?

- Você já está feito, não tem como remediar. E a Camarilla não seria burra de executar um vampiro assim do nada.

- E o que você preparou?

- Na hora você verá - Disse Thiago não muito convencido de sua desculpa – só tenho medo de que aquela sua ‘amiga’ esteja lá...

- Que amiga?

- A que te semi transformou...

Eles desceram do carro na porta de uma mansão abandonada. Qualquer um que passasse por ali poderia jurar que há décadas não entrava ninguém na casa. A rua deserta e sem iluminação ajudava esse cenário.

- Se eu tivesse estômago estaria com enjôo agora velho – disse Guilherme inerte olhando pra mansão.

- Eu também Guilherme, eu também... Vamos entrar?

Quando os dois vampiros entraram pareciam ter passado por um portal. As paredes brancas como neve e os lustres, que desciam do teto, de cristal davam um ar de limpeza impecável. Os móveis da sala de estar lembravam a França e as esculturas renascentistas davam um toque de glamour no espaço.

- Velho, que sinistro... lá fora é muito diferente!

- A casa não pode chamar atenção, Guilherme, porque aqui tem reuniões constantes dos membros ‘importantes’ da Camarilla. Não para os humanos, esses achariam que aqui moraria mais um milionário excêntrico, mas para outras facções de vampiros.

- Quem, por exemplo?

- Os antitribu, os independentes, os inimigos dos membros mais velhos.

- Nossa, mas por quê?

- Quando sair daqui te digo as paredes por aqui tem ouvidos afiados.

Logo que adentraram a sala, alguém de aspecto pálido e pele macilenta veio os receber. Vestia-se como um mordomo de filmes:

- Boa noite Sr. Thiago – disse o homem

- Boa noite, Harold.

- O Sr. deseja algo?

- Não Harold, nós já iremos à sala de reuniões.

- Sim Sr.

- Thiago!

Uma voz doce veio da porta lateral da sala, o vestido longo e vermelho contrastava com a pele branca e macia. O cabelo preso à nuca com mechas avermelhadas destacava o rosto fino e angelical.

- Eva, tudo bem?

A mulher esticou as mãos em direção aos lábios de Thiago e seus olhos negros acompanharam os movimentos do Gangrel como se tudo estivesse em câmera lenta. Thiago encostou os lábios na mão de Eva, visivelmente constrangido.

- Você e essa sua mania de desaparecer não é querido?

- Você sabe o quanto preso minha privacidade.

- Assim você priva nós mulheres de vermos essa beleza tão... Exótica – Eva dava um sorriso enquanto o analisava – e quem é o garoto?

- Este é Guilherme.

Guilherme olhava fixamente a mulher com o rosto mais abobalhado que Thiago já tinha visto. Eva fez o mesmo movimento a Guilherme.

- Ah, o neófito. Estonteante. Encantada, meu amor...

Guilherme não conseguia emitir um som e beijou a mão de Eva tão intensamente que fez Thiago pigarrear, querendo conter o riso.

- Então quase todos a postos já, meu querido – disse Eva, com um sorriso discreto nos lábios e os olhos devorando a alma de Thiago.

- Nós estamos indo Eva. Te encontro na sala.

- Sim querido, só vou retocar minha maquiagem. - E Eva saiu sem fazer um barulho e movendo como se flutuasse pelo chão.

- Vamos Guilherme?

Guilherme estava virado olhando as costas nuas de Eva que se afastava lentamente.

- Guilherme! – Thiago chacoalhava o braço de Guilherme na tentativa de tirá-lo do transe – vamos embora!

Como uma ordem, Guilherme virou-se para Thiago o acompanhando a sala de reuniões.

- Cara, o que aconteceu? – Guilherme se fosse humano estaria com uma dor de cabeça lancinante.

- Aconteceu que você deve se manter longe da Eva. Ela é perigosa e definitivamente se enjoa facilmente das pessoas.

- Mas ela é linda!

- É. Mas tome cuidado, ela é perigosa...

Em contraste com aquele ambiente claro, a sala de reunião era mais escura, mas não menos ostensiva. Uma mesa de madeira maciça estava no canto da sala em cima de um palanque e as cadeiras acompanhavam o estilo renascentista de toda a casa.

A sala se encontrava com cadeiras espalhadas em forma de círculo por todos os lados e estava praticamente lotada. Thiago olhava ao redor procurando as cadeiras mais afastadas e mais escondidas. Guilherme ainda parecia meio em transe e tudo o que fazia era seguir Thiago.

Thiago avistou duas cadeiras no canto esquerdo da sala, num local bem escuro e sossegado. Ao lado estava sentada uma mulher, com botas de couro cano alto, calças pretas e um decote generoso. Os cabelos ruivos e compridos contrastavam com a pele branca e as sardas nos ombros. Tinha uma expressão de desprezo e os pés em cima de uma cadeira vazia já dizia isso.

- Todos presentes? Podemos começar? - um homem com um terno de veludo roxo falava alto pelo salão. Sua gravata era vermelho sangue e tinha pesadas abotoadoras douradas na manga de seu paletó.

- Sim Marcos – disse Eva sentada ao seu lado esquerdo.

- Cara, e eu que achei que você se vestia estranho – sussurrou Guilherme aos ouvidos de Thiago, que o olhou com cara de desconcerto. Ao longe Eva sorria disfarçadamente.

- Estamos reunidos hoje, para a apresentação dos neófitos a Camarilla. Ao meu lado esquerdo tenho a minha tão adorada Srta. Eva, ao meu lado direito o Sr. Pedro e ao lado dele meu irmão Sr. Maurício.

Maurício estava vestido exatamente igual a Marcos, diferenciando-se somente a cor do terno que era azul. O cabelo lotado de gel dos dois fazia Guilherme querer rir. Só controlava-se porque sabia que Tiago iria estrilar se desse algum fora. Para evitar começou a reparar nos outros membros da mesa.

Eva já tinha conhecido e sua experiência do transe não tinha sido muito boa. Decidiu não olhar para ela novamente. Pedro era um cara estranho. Tinha os cabelos escorridos na face, uma aparência sisuda que assustava especialmente pelos seus pequenos olhos negros e seu nariz em forma de batata que lembrava o Seu João, bedel de sua época de ginásio.

Ao redor da sala, tinham vampiros de todas as maneiras. Se assustou ao perceber que não eram tão poucos assim. E alguns clãs tinham mais de um vampiro transformado. Sozinhos estavam a garota de cabelos ruivos e um homem, com um casaco preto, roto e com uma aparência totalmente desagradável.

Enquanto Marcos falava, a ruiva soltou um longo suspiro e reclamou em voz quase despercebida ‘que saco!’. Marcos parou por um instante e olhou para a garota, dizendo em uma voz calma, não alterando seu tom:

- Algum problema Srta. Karen?

- Só disse que saco. Você sabe que tenho coisas mais importantes para fazer do que ficar aqui sentada, te ouvindo falar por horas sobre as regras da Camarilla, pra apresentar mais um novo rebanho.

- Insolente como seu mestre. Como se você já não tivesse passado por isso... – falou Marcos com o mesmo tom e um sorriso sarcástico nos lábios quando foi interrompido por Karen.

- Passei, mas já participei de tantas reuniões, que sei seu discurso de cor. E insolente é a sua... - já levantava a voz Karen no mesmo impulso de levantar-se, quando Thiago tocou em seu braço. Karen que olhou em fúria pra esse ato, logo se acalmou estranhamente.

- E por falar em mestre, onde ele está? Era ele que deveria estar aqui hoje...

- Não sei de Kaius há pelo menos uns dez anos. Você sabe que me viro muito bem sozinha. Só não sei por que eu tenho que estar aqui sempre representando ele.

Thiago se espantou ao ouvir o nome de Kaius. Relembrou de seu sonho. Não poderia ser a mesma pessoa. Mas esse nome era tão incomum que não poderia mesmo ser outro vampiro.

- Porque você é a única Brujah membro da Camarilla que temos notícia – disse Marcos com uma fúria contida em sua garganta – E enquanto você estiver por perto, irá comparecer as reuniões. Podemos continuar?

- Sim - disse Eva visívelmente irritada.

Marcos continuou a solenidade, começando a apresentar os neófitos. Guilherme olhou desconcertado para Thiago querendo lhe perguntar loucamente o que era aquilo, mas Thiago só fez um movimento afirmativo com a cabeça. Enquanto isso olhava Karen como se fosse a chave para suas dúvidas. Só precisaria arrumar uma maneira de abordá-la sem irritá-la.

Eva olhava da mesa para Karen como se quisesse matá-la. E se pudesse já teria feito. Odiava os Brujah assim como odiava a idéia de perder a sua própria beleza. E sabia que se encostasse um dedo nos cabelos de Karen, Kaius cortava sua cabeça em dois segundos, sem dó e nem piedade. E se tinha algo que prezava era sua eternidade vivida em futilidades.

Sem perceber nada, Thiago estava tão disperso em seus pensamentos que sentiu o cutucão de Guilherme em suas costelas fazendo com que olhasse para a mesa.

- Sr. Thiago é a sua vez de nos apresentar seu neófito.

Thiago levantou e sentiu Eva o medindo por inteiro. Guilherme levantou logo em seguida e se fosse humano, seu estômago estaria revirando em cólicas no momento. Tiago, seguro de si, disse.

- Esse é Guilherme. Encontrei-o perto de meu refúgio. O transformei porque senti que ele poderia ser útil para a Camarilla como informante, já que Guilherme é jornalista. – Guilherme o olhava desconcertado, não tinha feito jornalismo e como assim informante? - E porque já me sinto velho para fazer algumas missões que me pedem – disse Tiago sorrindo um sorriso nervoso.

- Acho você sempre em forma – disse Eva o olhando languidamente – Mas o menino pode ser mesmo de muita valia, não acha Marcos?

- É, é verdade. E no que você é especialista Sr. Guilherme?

Guilherme olhou desesperado para Thiago. Não esperava ter que falar e não sabia mesmo o que falar. Quando fez menção de dizer algo, logo Tiago o interrompeu.

- Guilherme relata notícias locais próximas ao meu refúgio, todas relacionadas a desastres. Não é Guilherme?

Guilherme só fez um afirmativo com a cabeça olhando novamente para Marcos. Enquanto isso Pedro olhava para Guilherme numa desconfiança estranha, como se pudesse sentir o cheiro de um esquema. Já não gostava de Thiago, pois desconfiava de sua lealdade com a Camarilla e ter um neófito deste não ia ser muito agradável para seus planos.

- Bom... Muito bom. Isso pode nos ajudar. Não acha Sr. Pedro? Sr. Mauricio?

- O que você mandar Marcos... – disse Pedro olhando para Guilherme.

- Concordo com Pedro, meu irmão. – disse Maurício olhando para suas unhas. O que fez durante toda a reunião.

- Bom, então estamos todos dispensados. Marcaremos a próxima reunião em breve, tenho alguns assuntos para tratar com vocês sobre nossas atividades...

Logo que começou o burburinho das pessoas falando, Tiago viu Karen se afastar rapidamente de todos, rumo à porta. Pegou no braço de Guilherme o puxando para evitar novos contatos e foi em direção a Karen. Quando conseguiu alcançá-la tocou em seu ombro firmemente, fazendo Karen olhar para trás.

- Karen, certo?

- Sim...

- Eu sou Thiago e gostaria...

- Eu sei, mas estou com pressa e não estou a fim de conversar com paus mandados da Eva. Aliás, diz pra ela mandar uns caras mais gostosos, assim como você pra me seguir, já tô cansada... – dizia Karen quando foi interrompida por Thiago, que estava visivelmente irritado.

- Você está enganada, não sou nada da Eva e nem quero ser. Preciso falar com você uns minutos só, não vai tomar quase nada do seu tempo, mas não aqui dentro. Podemos sair? Vem Guilherme... – disse Thiago olhando firme pra Karen.

- Tá tudo bem, você tem cinco minutos.

- É só o que preciso...

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