19.12.08

O último amanhecer

Eram seis horas da manhã de uma sexta –feira a última vez que viu o sol. O céu estava tingido de vermelho, e tudo parecia lindo, calmo e patético, como a sua vida.

Ainda tinha um resto de champagne na garrafa, a cama desarrumada, a janela aberta deixando a brisa entrar. O lençol branco enrolado em seu corpo tinha um cheiro nauseante, como os seus pensamentos.

As janelas de Los Angeles refletiam uma luz brilhante que ardia em seus olhos e ela deixava, porque sentia.

Na noite anterior, tinha se deixado levar pela festa na galeria, a exposição do último artista tinha sido um sucesso, e bebeu um pouco demais. Lembrava de um garoto de cabelos castanhos e olhos escuros. Foi pra casa com ela. Devia ter ido embora cedo. Lembrava-se de suas mãos. Eram macias. Os beijos doces.

Estava com raiva, viu Kevin com uma garota sem sal, os cabelos brancos de tão oxigenados, aquele jeito estranho, raiva, muita raiva.

Nasceu no Brasil. Era filha única, e desde pequena teve contato com a arte. Os pais eram artistas plásticos. A mãe pintava quadros pós-modernos e o pai esculpia peças clássicas para lojas. Sempre teve dinheiro, e nunca precisou se preocupar em trabalhar.

Os avós maternos tinham uma empresa que fabricava plásticos. Seu pai era diretor dessa empresa. Foi desse laço que conheceu sua mãe e casou-se com ela. Nunca soube se eles eram realmente felizes. Acreditava que não, mas era só uma suposição.

Sua criação foi de princesa. E se comportava, talvez até hoje se comporte, como uma. Estudou nos melhores colégios, fez cursos e mais cursos de piano, línguas, e nas horas vagas, aprendia variadas técnicas de pintura com a mãe. Gostava de seus quadros, queria pintá-los.

Quando terminou o colegial, seus pais lhe mandaram para os EUA para estudar. Fez artes plásticas em Yale. Anos normais de faculdade, com festas e muitos estudos. Foi a melhor aluna. Não muito popular, nem muito solitária.

Quando terminou a faculdade se mudou para Los Angeles. Com o dinheiro que seus pais lhe emprestaram, abriu uma galeria de artes.

Nada ia muito bem, mas com o passar de alguns meses, tudo começou a melhorar. No começo expunha mais os seus quadros. Os vendia e conseguia um dinheiro para se manter bem. Depois começaram exposições de artistas renomados. E quando menos percebeu, sua galeria era um centro de referência artística em LA.

Seus pais, em uma viagem pelo Brasil, morreram em um acidente de carro. Como filha única, herdou toda a fortuna. Sabia administrar bem. Era a filha pródiga de seu pai. Tinha aprendido tudo o que ele lhe ensinara. Inclusive administração.

Há poucos meses, conheceu um homem chamado Kevin. Um corte diferente de cabelo, óculos sem aro, olhos verdes escuros, pele muito branca, uma voz fina e macia. Elegante. Usava ternos bem cortados, as mãos sempre muito limpas, um perfume muito marcante.

Kevin ia à galeria sempre depois da sete da noite, e ficava contemplando quadros por horas. A princípio achava estranho aquele homem que parava em frente a algo, analisando a cada detalhe. Suas visitas se tornaram freqüentes e a curiosidade dela também. Descobriu seu nome e que era de uma família tradicional de Los Angeles.

Um certo dia resolveu dar uma palavra com ele. Mas tinha chegado somente à noite na galeria quando foi surpreendida:

“Boa noite” – ele lhe disse com um sorriso nos lábios
“Boa noite” – respondeu assustada
“Meu nome é Kevin e gostaria de saber sobre um quadro que vi exposto, perguntei a um de seus atendentes, mas pediram que eu falasse com você...”
“Qual o quadro?”
“Você pode me acompanhar?”
“Claro...”

Enquanto conversavam, um fascínio grande crescia nela. A sua voz era envolvente e seus olhos penetravam. Era gentil e atencioso.

O quadro era dela e recebeu muito dinheiro por ele. Através dessa conversa, Kevin começou a freqüentar a galeria mais vezes. Na verdade, todos os dias.

E a cada dia que passava o seu fascínio por ele aumentava. Era algo inerente a sua vontade, o achava tudo o que nunca tinha visto antes. Nunca se apaixonou, e sabia que não estava apaixonada. Como Kevin, ela o contemplava, da mesma forma em que ele contemplava tudo o que estava a sua volta.

Fascinava-lhe loucamente. Levou-a pra jantar muitas vezes. Sempre quando a deixava em casa, passava a mão pelo seu rosto e a beijava entre os dedos.

Queria levá-lo a seu apartamento. Queria abraçá-lo, jogá-lo na cama, sentir seu corpo. Sabia que era macio, sabia que era amoroso. Estava obcecada, louca de desejo e se controlava por puro moralismo. Ele sabia, ela sentia que sabia.

Um dia, Kevin disse que estava louco por sua beleza. Queria imortaliza-la. Queria a ter por perto, daquele jeito, para sempre. Para a eternidade.

Era magra, a pele clara, os olhos azuis e os cabelos bem pretos. Seus avós paternos eram irlandeses.

Kevin dizia que seus olhos tinham um azul especial. Dizia que poderia a conhecer através dos olhos, se quisesse, saberia seus pensamentos. Ele a seduzia e ela se deixava levar. Quando percebeu, sentia necessidade de tê-lo por perto.

Naquela noite, quando o viu com outra mulher, sentiu raiva, ódio, desprezo. Um misto. Ele não a olhava, fingia que nunca a tinha isto. E tudo o que lhe disse? E seu jeito gentil? Não pensou.

Naquela sexta-feira seguinte a festa, procurou seu nome no cadastro e achou seu endereço. Foi guiada pela ira, até ver aqueles olhos quando lhe abriu a porta. Não conseguiu dizer o que queria, do jeito que queria.

“Você está pronta, não está?” – ele perguntou calmamente
“Estou” – ela respondeu sem hesitar
“Sabe o que vou lhe fazer, não sabe?” – mais uma vez, com segurança lhe perguntava
“Não me importo” •

Kevin mostrou os dentes, os olhos vermelhos e mesmo assim, não ela não sentiu medo. Ele lambia seu pescoço enquanto tirava seu vestido. Sentia seu corpo arrepiar, enquanto ele a beijava. Sentia prazer, prazer intenso, sentia seu corpo desfalecer, sua alma esvaindo aos poucos. Tudo escurecendo, seu corpo trêmulo.

Acordou sugando o pulso de Kevin.

“Assim, assim está bom” – ele dizia.

Começou a sentir dores horríveis. Dores que nunca pensou sentir em sua vida. E dormiu. Quando acordou olhava para os botões de sua camisa por, no mínimo, cinco minutos. Todas as cores pareciam mais vivas. Os sons mais nítidos, o tato muito aguçado. As sensações eram mais intensas, muito mais apaixonantes, muito mais excitantes. Gostava daquilo.

Kevin lhe explicou tudo. O que é ser um vampiro, quais suas implicações, o que podia, o que não podia. Mas lhe manteve longe do mundo. Não sabia por quanto tempo, nem sabia por que.

Previsivelmente, ele se entediou com sua presença. De alguma forma, ela sabia que ele não era como ela. Não via aquela existência como ela. Deixou-a.

Mesmo após muitos anos, ainda sentia aquela fascinação. Uma necessidade. Um abrigo. Um refúgio. Uma vida. Uma bela eternidade.

Era Natal quando Beatriz descia no aeroporto de São Paulo, rumo a casa que viveu em toda a sua infância.

Nenhum comentário: